Entendendo a turbulência no mercado de Renda Fixa

Entendendo a turbulência no mercado de Renda Fixa

Nos últimos meses o mercado de títulos públicos federais passou por turbulências que não ocorriam há mais de uma década. Em especial, a precificação de títulos pós-fixados (LFT ou Tesouro Selic) voltou a ter prêmio em relação à taxa CDI, algo que não ocorria desde 2005, afetando preços desses ativos no mercado secundário. As razões para isso ter ocorrido são muitas, mas as principais estão relacionadas a mudanças estruturais do mercado financeiro com uma taxa Selic mais baixa e o grande aumento das emissões de títulos públicos pelo Tesouro.

“As razões para isso ter ocorrido são muitas, mas as principais estão relacionadas a mudanças estruturais do mercado financeiro com uma taxa Selic mais baixa e o grande aumento das emissões de títulos públicos pelo Tesouro.”

Um dos efeitos da taxa de juros Selic estar em patamares mínimos históricos (2,00% a.a. desde jul/20) é uma mudança do comportamento da indústria de fundos de investimentos. Os investidores passam a ter menos desejo por fundos de renda fixa com liquidez de curto prazo, dado o baixo rendimento da taxa Selic, podendo investir esses recursos em outros tipos de fundos, como poupança, CDBs de bancos privados ou ativos mais arriscados, como fundos de renda variável. A saída de recursos dos fundos de renda fixa faz com que a demanda para títulos do governo também diminua, uma vez que esses fundos alocavam boa parte da sua carteira em títulos pós-fixados, em especial após a regulamentação do final de 2004 que instituiu tributação menor para quem carregasse por mais tempo a posição.

O fator mais importante, no entanto, é o aumento considerável das emissões de títulos pelo Tesouro Nacional. Esse aumento em 2020 decorreu da piora do resultado fiscal da União, com o déficit primário aumentando de R$ 124,1 bilhões projetados na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) 2020 para provavelmente algo em torno de R$ 850,0 bilhões na estimativa da SulAmérica Investimentos para o ano de 2020, devido aos efeitos da pandemia de Covid-19, com redução de arrecadação e  aumento de gastos extraordinários para lidar com os efeitos dela na saúde e na economia. Além dos R$ 725 bilhões de déficit a mais, o Tesouro Nacional também teve de emitir mais títulos nesse ano devido aos vencimentos da dívida, que somam cerca de R$ 721,2 bilhões em 2020, contra R$ 547,2 bilhões em 2019. A necessidade de financiamento total do Tesouro, somando o fluxo mensal de déficits nominais e os vencimentos do estoque da dívida no ano que precisam ser rolados, assim passou de R$ 976,3 bilhões em 2019 (13,5% do PIB) para R$ 1,860 trilhão em 2020 (25,5% do PIB).

 

Esse aumento considerável da necessidade de financiamento se fez sentir mais a partir dos meses mais recentes, quando o Tesouro passou a aceitar prêmios maiores nos seus leilões de títulos públicos. Isso ocorreu porque ele quer aumentar seu colchão de liquidez, que costumava ficar em torno de R$ 800 bilhões, e que foi gasto parcialmente durante a pandemia para fazer recompras nos momentos de maior estresse do mercado e para pagar os déficits nominais consideráveis acumulados no período, chegando a ficar em torno de R$ 500 bilhões. Esse colhão de liquidez aumentou recentemente depois que o Banco Central transferiu de forma extraordinária parte (R$ 325 bilhões) do seu resultado semestral com ganhos de reservas internacionais, porém agora o Tesouro tem interesse em aumenta-lo ainda mais, devido ao calendário de vencimentos da dívida com o qual se defronta. Desde 2015, devido à perda do grau de investimento da dívida pública nas agências de rating, o Brasil tem diminuído o prazo da sua dívida e aumentado a participação de dívida pós-fixada no total em relação à dívida pré-fixada. Isso decorre da menor demanda dos agentes privados pela dívida pública, em especial estrangeiros, que têm menor interesse em investir em países sem o selo de qualidade de grau de investimento. Assim, não apenas houve um aumento considerável nos vencimentos da dívida pública em 2020, resultado da dívida emitida em prazos mais curtos nos anos desde 2015 devido à situação fiscal pior, como também há grande concentração de vencimentos em 2021, em especial nos primeiros 9 meses do ano. A necessidade de financiamento para 2021 ainda é consideravelmente elevada, mesmo em cenários em que o teto de gastos é respeitado e o Copom sobe a taxa Selic apenas no final do ano para 2,75% (cenário base da SulAmérica Investimentos). O déficit nominal deve diminuir para R$ 542,1 bilhões, mas os vencimentos de dívida devem se elevar para R$ 954,7 bilhões, fazendo o Tesouro ter de emitir cerca de R$ 1,5 trilhão (18,7% do PIB). A necessidade de financiamento deve voltar aos patamares que prevaleciam anteriormente apenas em 2022, quando devem voltar para 13,2% do PIB.

Recentemente, o Tesouro e o Banco Central (BC) adotaram medidas para tentar acalmar o mercado de títulos públicos. Houve encurtamento e diminuição de parte das operações compromissadas do BC, que concorrem parcialmente com as LFTs, e também encurtamento das emissões do Tesouro. Isso diminuiu parte da pressão sobre alguns títulos, mas ainda não resolveu a principal questão que causa essas distorções, que é a dúvida em relação à situação fiscal brasileira. Apenas quando o cenário fiscal ficar mais tranquilo, com maior probabilidade de redução de déficits nos próximos anos, que a precificação dos títulos pode voltar a ter menores prêmios. Para isso é necessário que o governo federal dê sinais mais concretos de que deve ou diminuir os gastos (aprovando reformas estruturais que diminuam o crescimento dos gastos obrigatórios, por exemplo) ou arrecadar mais, via aumento de taxação ou vendas de ativos.

 

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